Ivoti, no ano de 1977. Lembro-me tão bem quando vim morar nesta casa
grande. Ah, como tudo era magnífico. A começar com os jardins.
Havia muito espaço para descobrir e muitas pessoas para cativar.
Confesso, eu me sentia uma formiguinha a andar pelos corredores que
eram feito estrada, larga, longa e florida. Pelos vitrais a luz se
aconchegava e sempre, sempre permitia que víssemos o azul do céu
quando estávamos a caminho do saguão. E à noite eu tropeçava pela
lisa cerâmica na tentativa de ver as estrelas. O lugar onde eu iria
estudar era, verdadeiramente colossal e, diante dele, tudo em mim era
fragilidade e inquietação. Me sentia um tantinho aventureira,
todavia, uma metade de mim era pura timidez, regada a olhares
furtivos e a voz embargada de emoção. Encabulada eu via, aqui e
ali, pequenos grupos de estudantes que conversavam em voz alta e
lembro também da euforia do reencontro dos que já se conheciam. Na
sala de estudos e nos quartos haviam as alunas responsáveis, uma
espécie de tutores. E eu era novata obediente em excesso, quase
súdita. Os sentimentos, que eu nem ouso caracterizar, simbolizava-os
em lindas caligrafias, imprimidas em papel de seda – algo que
chamávamos de carta. Relatos que nunca eram menores de cinco
páginas. E por falar em tutores, havia muitos deles no internato –
até mesmo, chefes de mesa. E, neste contexto retangular formado por
oito pessoas, aprendi – já na primeira refeição - uma palavra
nova: Fitchei! Esse vocábulo, inexistente em todo e qualquer
dicionário da Língua Portuguesa, não carecia de explicações. Em
sua escrupulosa existência, desconhecia-se a sua origem. Todavia
fazia parte do patrimônio da escola e era, ao nossos olhos,
universal. Fitchei exigia um complemento, algo como um objeto direto
que... talvez no final da refeição, passaria a ser um substantivo
abstrato. Fitchei o que ? A sobremesa! Fitchei a carne, fitchei o
bolinho. Eu fitchei alguma coisa. Esta palavra, em sua classificação
gramatical, era um verbo que jamais seria intransitivo, pois nós
fitchávamos sempre alguma coisa, uma provável sobra, com a qual
supríamos emoções e fomes. pouco tempo haveria de entender que “os
velhos” eram ninguém mais do que nossos professores, independente
da idade deles. E, ao cair da tarde, depois da janta, você levava o
violão e, num sorriso brejeiro, me convidavas para ver o anoitecer
nas escadarias da cancha de esportes. E tu interpretavas Gil com
tamanha perfeição... Dedilhavas Blowin in the Wind e eu cantarolava
a letra que na época eu sabia de cor. Bob Dylan era um de nossos
favoritos. Lembras? Sim, éramos jovens e em nossos corações morava
toda a esperança do mundo e acreditávamos encontrar no vento as
respostas para todas as nossas perguntas. Tudo, tudo em nossas vidas
ainda estava por acontecer.
Hoje você está voltando para este lugar que um dia foi a nossa
casa. Foi aqui que tecíamos a teia de nosso futuro. Num dia como
hoje, estamos com o coração no passado e por um momento fugaz,
somos a mesma turma novamente. Encontramos em cada abraço o repouso
da saudade... a embriaguez da emoção e a quebra dos silêncios.
Reencontrar você é contemplar o passado, intensificar o presente.
Algum dia volto para lhe rever e nosso encontro será colorido e
reluzente e então poderei me desfazer de toda esta bagagem de
lembranças. E em contradança, haveremos de transformá las em risos
e em palavras. Em gritos de felicidade.
Neste momento em que estás lendo minhas palavras, talvez eu esteja
parada no cais do porto em Copenhague. Quem sabe, uma brisa marítima
levará um pouco de mim para você. Ela acariciará sua pele e lhe
dirá que... se um dia lhe amei, hoje lhe amo. Em sussurros dirá
que, se um dia nos separamos, hoje quero lhe reencontrar. O vento lhe
dirá que… eu seria imensamente pobre se nunca tivesse cruzado em
seu caminho.
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