quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Doce de cana

Quando os dias eram inchados de novidades.  

Perto do estábulo, lá onde o muro de pedras formava a divisa das terras de Irene e das nossas, ao lado do pântano, onde cresciam aguapés, salgueiros, inhames e taboas... lá estava a moenda de cana-de-açúcar. Era uma construção singular que nunca decifrávamos por inteiro, mas que nos seduzia. Farejávamos  a sua forma, sua rústica espessura e o acre aroma de garapa que expelia de seus moinhos lenhosos. De vez em quando, Sofia e eu brincávamos nos grossos troncos de angico, em cima dos quais o engenho fora construído. Pulávamos de uma base para a outra, fazendo piruetas, ou formávamos uma gangorra com uma tábua qualquer, sem assentos e sem alavancas, o que não nos concedia segurança alguma em nossas selvagens acrobacias. A prancha escorregava em cima dos troncos e muitas vezes a gangorra, por nós edificada, tombava no chão, quando caíamos junto com ela. Ainda assim, nunca nos machucávamos. Gritávamos de entusiasmo quando as extremidades do balancé nos erguia para cima e nos jogava para baixo outra vez. A moenda era uma espécie de parque de brinquedos, um lugar que sugeria aventuras – o nosso playground. 

De tempos em tempos, quando mamãe abria a última lata de doce do estoque, era hora de transformar a seiva da cana de açúcar em schmier - um processo rudimentar, mas efetivo. Começávamos com o corte e com a limpeza dos caules no canavial. Os pendões, de folhas lancetadas e que machucavam a pele, aproveitávamos como pasto para os animais. Os colmos cortados, espessos e rígidos, eram transportados com a carroça de bois até o engenho. Ao entardecer, quando o sol se despedia devagarinho, iniciávamos a laminação. Atrelávamos a junta de bois na canga. O tronco da moenda, uma espécie de eixo principal, era cuidadosamente preso no jugo. E, assim que os animais começavam a tropear em círculo, as rodas giravam entre si e a engrenagem se punha em movimento. Eu andava atrás dos bois para atiçá-los, caso fosse necessário, e juntos formávamos um profundo lamaçal na terra arenosa. Mamãe colocava a ponta dos colmos, cortadas em forma de flechas, entre os dois grandes moinhos de madeira, onde os nós e os entre-nós da cana eram esmagados, implacavelmente. Do outro lado, Dora recebia os talhos já triturados e repetia o processo. A garapa escorria pelos grossas rodas e se juntava na bica da moenda, de onde corria para um grande cocho de madeira. Ana era a escolhida por mamãe para carregar a seiva até o paiol. Talvez ela escolhera Ana por ser a mais cuidadosa entre nós meninas, a que levava mais jeito nas lides da casa, possivelmente Ana era a que tropeçava menos - a que falava eu quero ser enfermeira quando crescer. Eu ficava pensando nisto e interpretava as escolhas de mamãe sem, porém, nunca retrucá-las. Ana despejava o líquido no tacho de cobre já edificado em cima de uma base de tijolos no alpendre do paiol de milho. Terminada a laminação, o tacho era devidamente fechado, protegendo a garapa do vento, do pó ou de outros possíveis invasores. Na manhã seguinte, muito cedo, ainda antes da alvorada do sino, era acendido o fogo para dar início ao cozimento. 


O alpendre estava varrido. Os utensílios de lavoura haviam sido agrupados no canto do paiol. Mochinhos de lenha e cadeiras circundavam o fogaréu. O alpendre parecia, na verdade, uma grande sala, o lugar por nós escolhido e preparado – ali sentávamos, já inquietas. Nos alojávamos nas melhores posições ao redor da panela de cobre. Por um momento fugaz, acreditávamos estar aconchegadas no banco de um grande cinema... ou, como se uma peça de teatro para nós seria apresentada, em cuja trama todavia, nós crianças éramos os protagonistas. O momento era nosso e não havia nada que, por ventura, pudesse perturbá-lo. Com efeito, não perdíamos um único detalhe e a fumaça cheirava  e ardia em nossos olhos. E o que importava?  A realidade era mágica e... aromática.


Durante muitas horas, a garapa fumegava dentro do tacho, reunindo nas extremidades partículas escuras, próprias da cana. Uma sólida espuma se formava por sobre o doce líquido, que mamãe tirava com uma grande escumadeira de cabo comprido. Este era um trabalho delicado e minucioso, pois somente com a limpeza eficiente da garapa, é que se obtinha um doce claro e transparente. Com um taco de madeira, especialmente feito por meu pai para este fim, mexíamos a fervura horas a fio. Era, na verdade, um processo lento que durava quase um dia inteiro. Todas nós ajudávamos nesta atividade, quando imitávamos os gestos perfeitos de mamãe, quando balançava o corpo num movimento de vai-e-vem, vagaroso mas constante, uma vez que ela considerava importante atingir todo o diâmetro do tacho. Era como se dançasse, como se tivesse que ajudar no cozimento com todo o seu corpo e sua alma, como se somente dela e de seus gestos harmoniosos dependesse a qualidade do produto. Em sua inquebrantável responsabilidade, mamãe não cansava de nos advertir sobre o calor intenso do fogo e não permitia que chegássemos perto demais do fogaréu. Mamãe dizia que todo o cuidado era pouco, e Ana explicava com todas as letras que uma queimadura demorava semanas e meses até sarar. De vez em quando, mamãe tirava do tacho algumas amostras da mistura, deixando-a esfriar, verificando dessa maneira, a consistência do doce. Ela deixava-a escorrer diante da luz e calculava a sua cor, mexia-a com a colher e analisava o creme de forma minuciosa. No término do processo, mamãe enchia vidros e latas com a mistura fumegante. Ela dizia que era necessário fechá-la ainda quente, assim a marmelada durava meses, sem formar camadas de bolor na extremidade do vidro. 

Depois das últimas conchadas, o tacho era nosso. Lambíamos e juntávamos os restos com nossas colheres e nos deliciávamos com o sabor da marmelada ainda morna. No final do dia, estávamos tatuadas de fuligem negra. Nossos vestidos de riscado, costurados por mamãe, estavam grudentos e sujos, impregnados de restos de melado. Entretanto, os dias que ocupávamos para fazer o cozimento eram épicos, quase folclóricos. Era a suavidade da vida que experimentávamos – a nossa vida telúrica, temperada com a vitalidade do doce na cana-de-açúcar que bebíamos. Eram sabores de uma infância sadia e cheia de liberdade e... de tantos privilégios.

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